quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Tolerância - Negociando limites

Lidia Muniz é negra. Negra e loira, aliás, como a cantora norte-americana Beyoncé. Ao viajar no começo do ano para um congresso de terapeutas na Califórnia, o estado mais politicamente correto dos Estados Unidos, ela notou que muitas sorriam ao passar por ela, como querendo dizer: “Eu a aceito do jeito que você é. Por mais diferente que você possa parecer do que eu sou, ou do que eu gosto, está tudo certo”. Depois de 15 dias, esse comportamento supostamente gentil começou a lhe dar nos nervos. “Sei que sou diferente, fora do padrão, e que seria normal uma pessoa olhar para mim surpresa, até com certa hostilidade. Aceito esse risco. Mas era terrível suportar essa tolerância infinitamente condescendente que, no fundo, parecia sussurrar ‘olha, minha filha, tudo bem, você é maluca, mas eu, que sou bem legal e tolerante, vou aceitar sua excentricidade, desde que ela não invada os meus limites e você fique na sua, ok?’” Enfim, provavelmente um conveniente verniz social, tão raso que daria para raspar com a unha.

Difícil, não? Até a tolerância empostada pode ser um ato inconsciente de arrogância. Mesmo quando eu, você e talvez o pessoal da Califórnia achamos que estamos sendo tolerantes, podemos esconder debaixo do pano um baita complexo de superioridade e uma indisfarçável prepotência. Ou então, pior ainda, o eterno desejo de sermos sempre fofos, doces e certinhos como o ursinho Puff.

Por isso é que é bom a gente refletir mais profundamente sobre os limites da tolerância, quando ela é real e desejável, ou exagerada e falsa. Ou quando somos tolerantes com os outros e intolerantes conosco, até o ponto de a tolerância virar autoabuso. Ou ainda quando a intolerância fecha nossos olhares e atitudes e nos torna rígidos e inflexíveis. Essa é uma questão cada vez mais presente em nossas vidas. Não dá mais para passar por cima.

Tolerância é uma palavra ingrata na maioria das línguas latinas. Ela traz em seu bojo a ideia de que é preciso aguentar, suportar, enfim, tolerar alguma coisa porque não se tem outra saída. E, já que não tem jeito, já que não dá mesmo, então engolimos o sapo. Toleramos. O verbo, na sua negativa, é igualmente poderoso: “não tolero aquele fulano”, “não tolero que mexam nas minhas coisas”. Ele nos traz uma sensação de irritação, impaciência e até mesmo raiva com outra pessoa ou situação. A ideia é que um limite foi invadido, ultrapassado, e que fiquei louco da vida com isso. Então não tolero.

“Casa de tolerância”, ou bordel, num outro exemplo, é o lugar onde é possível ultrapassar todos os limites, onde tudo é tolerado, inclusive o sofrimento e a humilhação do outro. Vamos combinar, portanto, que, por causa dessa carga emocional, tolerância não é exatamente a palavra adequada para nos dar uma noção de amplidão, de abertura. Algo leve, prazeroso, acolhedor.

Talvez a melhor palavra para dar essa ideia de expansão de limites pessoais fosse abrangência. Eu abranjo, tu abranges, ele abrange. Abro os braços e o incluo como parte de mim mesmo. A primorosa expressão usada para designar o outro pelo povo kakinawá, da Amazônia, por exemplo, é txai. Ela significa amigo, companheiro, mas também “a outra metade de mim”. Txai é aquele que vai me completar e que, juntos, formaremos um só ser. Além de fazer parte de uma música de Milton Nascimento e Maurício Bastos, a palavra txai é a tolerância exercitada em seu melhor sentido: com o sentimento de que somos todos interdependentes. Sem salto alto, sem arrogância, reconhecendo no outro uma contraparte de mim mesmo


Diferente é a mãe


Reinaldo Bulgarelli, autor de Diversos Somos Todos, livro que trata exclusivamente do tema diversidade, escolheu o nome txai para sua pequena empresa de consultoria. Reinaldo trabalhou com crianças indígenas na Amazônia em projetos da Unicef, com o educador pernambucano Paulo Freire junto aos meninos de rua, enfim, passou a maioria dos seus 47 anos envolvido com inclusão social e educação. Mas é interessante conhecer onde e como germinou essa incrível aptidão. Foi em 1978, nas reuniões do movimento de juventude cristã que tinham lugar na igreja Nossa Senhora do Rosário, no largo Paissandu, no centro de São Paulo. Na época, a paróquia congregava uma grande comunidade negra. “Tinha 16 anos e era o único jovem branco por ali”, diz. “Mais do que aprender o que era ser negro, me conscientizei do que era ser branco: os privilégios e oportunidades que tinha, a diferença de tratamento que recebia da sociedade. Antes disso, não tinha a menor noção dessa diferença.”

O abismo que separava as duas realidades foi lição suficiente. Reinaldo resolveu dedicar o resto da vida para lutar pela tolerância à diversidade. “A gente sempre pensa que o diferente é o outro, que tenho de tolerar aquele que é diferente de mim. Esse é um grande engano. Cada um de nós é diferente de alguma maneira. A diferença que está no outro também está em nós, se mudamos o ponto de vista. Não há como nos excluir dessa condição de diversidade, que é própria do ser humano”, afirma Reinaldo.

Hoje, além de coordenador de cursos na Fundação Getúlio Vargas na área de responsabilidade social, ele trabalha com inclusão em empresas. Isto é, depois de sua passagem por elas, aumenta significativamente o número de mulheres em cargos de liderança, abrem-se novos setores que incluem deficientes, propõem-se metas mais efetivas de responsabilidade social. Otimista, Bulgarelli acha que no Brasil nos movemos em uma cultura que, no geral, é flexível e tolerante, para o bem e para o mal. “Vivemos numa sociedade que tem o mito da democracia racial, por exemplo. Se, por um lado, esse mito impede que enfrentemos de uma forma mais realista o que realmente acontece, ele também nos acena com a ideia de que é possível caminhar nessa direção. Há algumas sociedades mais rígidas e conservadoras em que esse tipo de pensamento sequer tem lugar”, diz

Mas também pode ocorrer o contrário: o excesso de tolerância que denuncia passividade, lassidão, a falta de resistência contra o abuso. É o que vamos ver a seguir.


A ira santa


O excesso de tolerância pode gerar o abuso? João Pereira Coutinho, jornalista português que assina uma coluna no jornal Folha de S.Paulo sobre temas políticos e sociais, tem certeza que sim: “O excesso de tolerância pode levar ao pecado capital: tolerar o intolerante, ou seja, aquele que destrói nossa própria tolerância”.

Com palavras precisas, Coutinho delineia questões que sensibilizaram muitos filósofos: até onde é possível tolerar? Qual o princípio que deve nortear minha tolerância? “O princípio do pluralismo, isto é, a ideia de que existem valores e objetivos de vida múltiplos e nem sempre compatíveis”, diz Coutinho. Mas ele adverte: “Porém esse pluralismo não deve ameaçar os valores que eu considero centrais para uma existência digna. Ou seja: posso tolerar que os outros prefiram viver suas vidas de determinadas formas, desde que isso não ponha em causa minha vida e a vida dos outros”.

É o que o filósofo austríaco Karl Popper chama de “o paradoxo da tolerância”: não se pode tolerar o intolerável. “Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância”, sentencia ele numa lógica irretorquível.

E o que é o intolerável? “É aquilo que nos causa dor, sofrimento, prejuízo, indignação, humilhação, e que geralmente é causado por um abuso indiscriminado de poder”, diz a psicoterapeuta Denise Ramos, do Laboratório Formativo do Ser, ligado à linha do psicólogo Stanley Kelleman. Esse é o limite: o que pode ser traduzido por “maus tratos” não deve ser tolerado. E há várias formas de reagir diante daquilo que não conseguimos tolerar. A mais comum é a raiva. “Ela é um alarme que nos acorda para um limite que foi ultrapassado, que nos desperta para uma situação que consideramos abusiva.” Mas nem sempre a raiva precisa, necessariamente, ser direcionada contra quem ultrapassou limite.“Às vezes isso acontece, numa reação imediata e legítima contra o abuso. Mas, no mundo adulto, a energia da raiva também pode ser usada como uma mola propulsora para mudar a si próprio e transformar a circunstância abusiva”, diz Denise.

Porém, mais um cuidado a tomar nesse terreno escorregadio. “Se não se deve tolerar tudo, pois seria destinar a tolerância à sua perda, também não se poderia renunciar a toda e qualquer tolerância para com aqueles que não a respeitam”, escreveu o filósofo francês André Comte- Sponville em O Tratado das Pequenas Virtudes. Isto é, não se pode ser justo só com os justos, generoso apenas com os generosos, misericordioso com os misericordiosos. Porque isso não é nem justo nem generoso nem misericordioso. “Tampouco é tolerante aquele que só o é com os tolerantes. Se a tolerância é uma virtude, como acredito e como geralmente se aceita, ela vale por si mesma, inclusive para com os que não a praticam”, afirma. A tolerância, portanto, não é um objeto de troca num mercado, ou espelho que reflete apenas quem a pratica. Tolerância é abrangência. Temos de nos tornar maiores do que somos para poder praticá-la.


Percepção errônea


Quanto mais nítida a noção de separatividade que tenho de alguém, menos eu sou capaz de ser tolerante com essa pessoa. Pois, afinal, eu sou uma, ela é outra. Para os budistas, enxergar as pessoas e coisas separadas umas das outras é como olhar para um tapete e ver apenas os fios individualmente, sem se dar conta de seu entrelaçamento. “Podemos dizer que a teoria da interdependência, da interconectividade entre os seres, é uma compreensão profunda da realidade. Ter esse ponto de visita reduz a estreiteza mental. Com a mente estreita é mais provável desenvolver apego, aversão”, diz o Dalai-Lama no livro A Sabedoria do Perdão, um saboroso relato sobre o cotidiano do líder tibetano feito por seu amigo, o erudito e bem-humorado professor Victor Chan.

O apego ao que achamos que está certo e a aversão por quem não concorda conosco, ou seja, a estreiteza mental, é a base da intolerância. Por isso é que o filósofo Comte-Sponville afirma que é preciso certa humildade para exercer a abrangência: sabemos que nossas crenças e valores são relativos, subjetivos, parciais. O que acreditamos ser verdade não é uma verdade absoluta, que serve em toda e qualquer condição, e para todas as pessoas. Por isso não podemos impô- la. Achar que o outro não pode pensar diferente é o retrato acabado da intolerância, do totalitarismo e do fundamentalismo. Também é por isso que a intolerância está sempre associada à arrogância e à prepotência. É melhor dar uma paradinha, quando achamos que sabemos o que é melhor para o outro. Pois ele tem o direito de não concordar.

Teoria e prática


Gandhi foi absolutamente intransigente e firme em sua posição contra o domínio britânico na Índia. Porém, em vez de lutar abertamente, com ódio no coração e derramamento de sangue, preferiu exercitar a resistência não-violenta, baseada na mobilização social e na pressão política. Além de hábil e inteligente, ele tinha abrangência, isto é, uma clara visão de estadista. Entendeu que a resistência pacífica pode ser tão ativa e eficaz quanto uma revolução.

Um presidente do Brasil, Fernando Collor, foi deposto a partir da mobilização pacífica ensinada por Gandhi: os estudantes secundaristas espernearam, bateram o pé, e a sociedade voltou a atenção para eles. Ou seja, a intolerância pode ser combatida com firmeza de posições, manifestações de repúdio e uma pronta reação. E certamente essa não é a posição fofinha do ursinho Puff. É muito importante entender que tolerar não quer dizer ser passivo, indiferente, omisso. “Tolerar Hitler era ser seu cúmplice, pelo menos por omissão, por abandono, e essa tolerância já era colaboração”, acrescenta Comte-Sponville.

“A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência”, afirma claramente em seu primeiro parágrafo a famosa Declaração de Princípios sobre a Tolerância promulgada pela Unesco. É bom a gente não se confundir.

Essas grandes questões também podem ser vividas no dia a dia. Uma das pessoas que mais colaboraram para o estímulo à tolerância no Brasil é a professora Lia Diskin, uma das criadoras da Associação Palas Athena, um centro de referência (sediado em São Paulo) com relação ao estudo desses temas. Os maiores eventos relacionados à cultura de paz dos últimos 30 anos no país tiveram sua participação direta ou presença. Mas nada disso teria valor se ela não aplicasse esses conceitos em seu dia a dia. E aqui gostaria de dar meu testemunho pessoal. Com tolerância, Lia Diskin me recebeu para entrevistasrelâmpago, sabendo de meus prazos estreitos (uma realidade diária no jornalismo) e urgência, mesmo tendo sua mesa repleta de inúmeras questões pendentes. Pessoa ocupadíssima, Lia Diskin nunca deixou de responder meus e-mails, por exemplo, sobre o sentido mais profundo do meu nome budista. Não raro entrei em sua sala sorrateiramente a fim de roubar seu tempo para esclarecer dúvidas pessoais com relação ao cristianismo e ao budismo ou para comentar a fala mais profunda de um entrevistado recente. Mesmo quando foi firme – e quem trabalha com ela sabe o quanto Lia Diskin pode ser severa –, nunca deixou de mandar seu cálido abraço na última linha do e-mail. “Um grande amor pela humanidade, e sua consequente tolerância e compaixão por todos os seres, é capaz de mover cada um dos pequenos atos de uma pessoa no seu dia a dia. É a união final entre a teoria e a prática”, afirma a psicoterapeuta Denise Ramos. Se isso foi possível para Lia Diskin, que se crê tão falha, humana e cheia de defeitos, isso significa que a porta está aberta para cada um de nós.


Fonte: Revista Vida Simples